Aviso aos navegantes: Esta não é uma resenha imparcial. Não poderia ser,
já que minha avaliação baseia-se em impressões bastante subjetivas, contaminadas
pela admiração que nutro pelo autor. No entanto, onde houver discernimento e algum
critério, lá estará meu senso crítico.
Pretérito
Imperfeito, romance do escritor Gustavo Araujo, teve como inspiração o conto A Menina na Floresta,
escrito pelo autor, em 2009. A edição, realizada pela Caligo Editora Ltda.,
impressiona pela qualidade e beleza.
A
história desenvolve-se na cidade fictícia de Porto Esperança, focando-se em
três personagens: Toninho, Cecília e
Pedro Vieira. Pode-se dizer que o livro trata do amor, em suas formas
mais sutis e mais agudas. Sentimentos provocados, daqueles que incomodam e surgem
sob as densas camadas da imaginação de cada um.
Apesar
de ter iniciado a leitura com expectativas bastante elevadas, Pretérito Imperfeito conseguiu me
surpreender. Não, não fui às lágrimas. Não salguei as páginas do livro, mas
confesso que alisei as palavras com carinho e permaneci muito cautelosa durante
a leitura. A narrativa flui fácil demais e isso me assustou. Não estava preparada
para abandonar os personagens, ou pior ainda, ser desamparada por eles quando
tudo chegasse ao fim. Fiquei refém de um
romance (poético isso, não?).
Com
muita destreza com as palavras e hábil formação de belas imagens, que
atravessam toda a narrativa, Gustavo Araujo, consegue o improvável: fazer o
leitor torcer pelo “vilão” da história. Fácil é se apaixonar pelo menino
Toninho e desejar cuidar de Cecília, mas com Pedro Vieira, a conversa é bem
outra. Apesar de todas as razões para se odiar o personagem, em determinados
momentos, torna-se impossível não se comover com os fundamentos da construção da
sua difícil personalidade.
(...)
que mesmo alguém como ele estava ao
alcance da redenção. (p. 275 )
O título
do romance já revela poesia, mesmo que alguns possam associá-lo às aulas de
gramática e aos temidos tempos verbais. Pretérito
Imperfeito foi a escolha acertada, pois representa muito bem o enredo do
romance – dois meninos com vidas diferentes, ligados por um passado bem
imperfeito.
O
nome da cidade que serve de cenário para a trama – Porto Esperança – também
desperta interesse. Passa a ideia de um lugar de raízes - pouso – atracação – o
porto, e ao mesmo tempo, remete à esperança de um futuro. Ou seja, o passado
(porto) e o futuro (esperança) estão amalgamados em um só local.
Intercalar
a narrativa com o cotidiano de Pedro, as cartas de Cecília e o passado de Pedro
Viera foi uma grande sacada. As cartas de Cecília à amiga Carol (que surge como
uma destinatária misteriosa/imaginária) são lidas como se formassem um diário –
o que parece ter sido mesmo a intenção do autor.
Inevitável
relacionar as cartas ao livro O Diário de
Anne Frank, o que ao ler o posfácio, percebe-se que houve mesmo essa
inspiração. São passagens que revelam muita sensibilidade e destreza com as
palavras. Se você achar que a escrita de Cecília revela uma maturidade inverossímil
para uma menina de 13 anos, saiba que eu mesma era assim nesta idade. Aliás,
adolescentes são surpreendentes, de uma forma ou de outra.
No
decorrer da leitura, há um momento de estranhamento. O leitor depara-se com um
cruzamento de realidades e memórias. O paralelismo do tempo e das vidas de
Toninho e Cecília provoca desconfiança a princípio. Uma cutucada no leitor – Ei, tem algo esquisito acontecendo aqui. Em
que ano foi isso? – O que serve para atrair ainda mais a atenção para a
trama. Qualquer explicação torna-se desnecessária, pois roubaria a magia do
encontro dos dois meninos.
Há
muitas interligações em todo o texto: os pássaros, os lugares, as várias
tonalidades do céu e elementos simbólicos como a escada, impressionante construção
de imagem, relacionando o terreno ao celeste.
Atenção: a
seguir, spoiler detectado.
Olhou ao redor. Havia ali uma escada.
Dessas de madeira com os degraus firmes e bem ajustados. (p.253)
Gostei
do link entre os sonhos. O delírio de Toninho no poço com o sonho que ele havia
tido com uma escada, uma ave e a mãe:
Via um passarinho, um sabiá talvez,
pousando sobre um livro suspenso no ar a dezenas de metros do chão. Toninho
percebia então que ele próprio agarrava-se a uma escada e subia na direção da
ave. (p. 29/30)
No sonho,
Toninho não alcançava a ave porque ouvia a mãe chamando. No seu delírio/sonho
no fundo do poço, o menino escuta Mariana/Cecília pedindo para ele ficar, ali,
junto com ela. A mãe e a menina, figuras femininas, ambas amadas por Toninho,
mas que estavam presas no passado (no fundo do poço das lembranças).
Os
pássaros, paixão do menino Toninho, surgem com todo o seu simbolismo, formando um
quadro bem interessante. Representando a leveza, o divino, a alma, a liberdade
e até a amizade. Suas asas traduzem a liberdade da imaginação, são os
mensageiros entre o céu e a terra.
E o que dizer de certas frases que despertam
suspiros?
Ah, aquele olhar de feiticeira. Como
dizer não? (p.
84)
O que fazer quando se sabe o momento
exato em que tudo irá acabar? (p.140)
Pretérito Imperfeito é
um daqueles romances que prendem a atenção de forma imediata, agregando um
misto de delicadeza, embasamento político/histórico às nossas referências
pessoais. O livro atinge em cheio o sótão das memórias, revirando caixas de
sentimentos e questões bastante particulares. Quando nos damos conta, já estamos
encantados.
Este
é, sem dúvida, um livro que merece ser conferido com atenção e apreciado sem moderação. Se você for dado a lágrimas,
prepare-se. Cerque-se de muitos lenços e evite ser flagrado por algum tempo. Nariz
e olhos vermelhos denunciarão que você anda consumindo algo extraordinário. Que
seja este romance viciante.
Cotação:
*****
Obrigada pela resenha! Me trouxe ótimas lembranças dessa leitura! 😉
ResponderExcluirRealmente, um livro que cava lembranças em todos nós. Eu que agradeço pela sua leitura e comentário. :)
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