O calor das coisas é um
dos meus livros preferidos. Uma obra que faz parte da minha formação de leitora
e escritora. Inspirei-me, descaradamente, em Nélida Piñon. Eu era bastante
jovem quando ganhei este livro de uma amiga.
A primeira impressão que tive ao
ter o livro nas mãos foi de agradável surpresa com o título. São treze contos
tecidos com muita habilidade, retratando histórias a partir da visão peculiar
da autora, através de um discurso tingido de humor e ironia. Nélida Piñon desnuda a alma de seus
personagens, com a sensibilidade de quem aprecia a vida, mostrando ao leitor o
seu próprio reflexo.
Página a página, o leitor
encontra belas imagens construídas e apresentadas com naturalidade. A prosa é carregada de poesia e crítica,
marcando os personagens com uma racionalidade sensual, como uma provocação
premeditada.
O calor das coisas, o
conto que dá nome ao livro, ao contrário do que pensei ao ler o título, não
fala de nada “quente”. Não no sentido sensual de “calor”, pelo menos. A
história fala de Oscar, apelidado de “pastel” na infância por causa da gordura.
Adora comer pastéis, beirando à compulsão. Na trama, percebemos uma relação
neurótica entre o menino, a mãe e a comida. A mãe finge ignorar o problema do
peso do filho, atribuindo um valor maior à alimentação, como símbolo do seu
amor maternal. Oscar, então, come para agradar a mãe, pois não quer recusar o
afeto traduzido pela comida. Há a formação de um absurdo triângulo vicioso que
prende o filho à mãe através da comida, tornando-o cada vez mais obeso e dependente
da mãe, que também não consegue imaginar uma vida sem o filho perto de si.
O conto I love my husband
trata da relação entre uma mulher e o seu marido, através de uma visão cheia de
ironia.
Eu amo meu marido. De manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe café. Ele
suspira exausto da noite sempre mal dormida e começa a barbear-se. Bato-lhe à
porta três vezes, antes que o café esfrie. Ele grunhe com raiva e eu vocifero
com aflição. Não quero meu esforço confundido com um líquido frio que ele
tragará como me traga duas vezes por semana, especialmente no sábado.
Disse um Campônio à sua
amada, é um conto que poderia ser definido como uma bela declaração de
amor. Um homem do campo transmite a delicadeza dos seus sentimentos à mulher
amada:
Assim, eu faço discreto pedido,
não me arraste contigo quando te fores. Ou não me aceites, ainda que te peça
para seguir o teu caminho. Não quero despojar-me de um coração que te ofereci
com tanta opulência. (...) Do teu camponês que se despede sem saber que é para
sempre.
Apesar da falta de diálogos em
todo o texto, a narrativa não se torna monótona pois cada personagem apresenta
seus monólogos e o silêncio é preenchido pelas reflexões do próprio leitor.
O discurso da autora transborda
em uma ironia refinada, às vezes, renegando antigos valores e revelando um tom
político, como em O Jardim das Oliveiras, primeiro conto da obra, traz uma alusão
a Cristo. A narração, feita na primeira
pessoa, conta a história de um preso torturado, levado a examinar os horrores da ditadura e a covardia
moral ao seu redor. O protagonista do conto tenta negar a si mesmo, assim como
Pedro negou a Jesus.
Os contos envolvem e instigam a
curiosidade, sem que o leitor se dê conta da armadilha feita de palavras. O
amor dentro dos relacionamentos, passionais ou não, os sentimentos com suas provocações
e consequências. Uma leitura que vale a pena, do princípio ao fim.
Cotação: *****