sexta-feira, 4 de novembro de 2016

PRETÉRITO IMPERFEITO ou PERFEITO?




Aviso aos navegantes: Esta não é uma resenha imparcial. Não poderia ser, já que minha avaliação baseia-se em impressões bastante subjetivas, contaminadas pela admiração que nutro pelo autor. No entanto, onde houver discernimento e algum critério, lá estará meu senso crítico. 


Pretérito Imperfeito, romance do escritor Gustavo Araujo, teve como inspiração o conto A Menina na Floresta, escrito pelo autor, em 2009. A edição, realizada pela Caligo Editora Ltda., impressiona pela qualidade e beleza. 


A história desenvolve-se na cidade fictícia de Porto Esperança, focando-se em três personagens: Toninho, Cecília e Pedro Vieira. Pode-se dizer que o livro trata do amor, em suas formas mais sutis e mais agudas. Sentimentos provocados, daqueles que incomodam e surgem sob as densas camadas da imaginação de cada um. 


Apesar de ter iniciado a leitura com expectativas bastante elevadas, Pretérito Imperfeito conseguiu me surpreender. Não, não fui às lágrimas. Não salguei as páginas do livro, mas confesso que alisei as palavras com carinho e permaneci muito cautelosa durante a leitura. A narrativa flui fácil demais e isso me assustou. Não estava preparada para abandonar os personagens, ou pior ainda, ser desamparada por eles quando tudo chegasse ao fim.  Fiquei refém de um romance (poético isso, não?).  


Com muita destreza com as palavras e hábil formação de belas imagens, que atravessam toda a narrativa, Gustavo Araujo, consegue o improvável: fazer o leitor torcer pelo “vilão” da história. Fácil é se apaixonar pelo menino Toninho e desejar cuidar de Cecília, mas com Pedro Vieira, a conversa é bem outra. Apesar de todas as razões para se odiar o personagem, em determinados momentos, torna-se impossível não se comover com os fundamentos da construção da sua difícil personalidade.


(...) que mesmo alguém como ele estava ao alcance da redenção. (p. 275 )

O título do romance já revela poesia, mesmo que alguns possam associá-lo às aulas de gramática e aos temidos tempos verbais. Pretérito Imperfeito foi a escolha acertada, pois representa muito bem o enredo do romance – dois meninos com vidas diferentes, ligados por um passado bem imperfeito. 


O nome da cidade que serve de cenário para a trama – Porto Esperança – também desperta interesse. Passa a ideia de um lugar de raízes - pouso – atracação – o porto, e ao mesmo tempo, remete à esperança de um futuro. Ou seja, o passado (porto) e o futuro (esperança) estão amalgamados em um só local. 


Intercalar a narrativa com o cotidiano de Pedro, as cartas de Cecília e o passado de Pedro Viera foi uma grande sacada. As cartas de Cecília à amiga Carol (que surge como uma destinatária misteriosa/imaginária) são lidas como se formassem um diário – o que parece ter sido mesmo a intenção do autor. 


Inevitável relacionar as cartas ao livro O Diário de Anne Frank, o que ao ler o posfácio, percebe-se que houve mesmo essa inspiração. São passagens que revelam muita sensibilidade e destreza com as palavras. Se você achar que a escrita de Cecília revela uma maturidade inverossímil para uma menina de 13 anos, saiba que eu mesma era assim nesta idade. Aliás, adolescentes são surpreendentes, de uma forma ou de outra. 


No decorrer da leitura, há um momento de estranhamento. O leitor depara-se com um cruzamento de realidades e memórias. O paralelismo do tempo e das vidas de Toninho e Cecília provoca desconfiança a princípio. Uma cutucada no leitor – Ei, tem algo esquisito acontecendo aqui. Em que ano foi isso? – O que serve para atrair ainda mais a atenção para a trama. Qualquer explicação torna-se desnecessária, pois roubaria a magia do encontro dos dois meninos. 


Há muitas interligações em todo o texto: os pássaros, os lugares, as várias tonalidades do céu e elementos simbólicos como a escada, impressionante construção de imagem, relacionando o terreno ao celeste. 


Atenção: a seguir, spoiler detectado. 


Olhou ao redor. Havia ali uma escada. Dessas de madeira com os degraus firmes e bem ajustados. (p.253)


Gostei do link entre os sonhos. O delírio de Toninho no poço com o sonho que ele havia tido com uma escada, uma ave e a mãe: 


Via um passarinho, um sabiá talvez, pousando sobre um livro suspenso no ar a dezenas de metros do chão. Toninho percebia então que ele próprio agarrava-se a uma escada e subia na direção da ave. (p. 29/30)


No sonho, Toninho não alcançava a ave porque ouvia a mãe chamando. No seu delírio/sonho no fundo do poço, o menino escuta Mariana/Cecília pedindo para ele ficar, ali, junto com ela. A mãe e a menina, figuras femininas, ambas amadas por Toninho, mas que estavam presas no passado (no fundo do poço das lembranças). 


Os pássaros, paixão do menino Toninho, surgem com todo o seu simbolismo, formando um quadro bem interessante. Representando a leveza, o divino, a alma, a liberdade e até a amizade. Suas asas traduzem a liberdade da imaginação, são os mensageiros entre o céu e a terra.


E o que dizer de certas frases que despertam suspiros? 


Ah, aquele olhar de feiticeira. Como dizer não?  (p. 84)

O que fazer quando se sabe o momento exato em que tudo irá acabar? (p.140)


Pretérito Imperfeito é um daqueles romances que prendem a atenção de forma imediata, agregando um misto de delicadeza, embasamento político/histórico às nossas referências pessoais. O livro atinge em cheio o sótão das memórias, revirando caixas de sentimentos e questões bastante particulares. Quando nos damos conta, já estamos encantados.  


Este é, sem dúvida, um livro que merece ser conferido com atenção  e apreciado sem moderação. Se você for dado a lágrimas, prepare-se. Cerque-se de muitos lenços e evite ser flagrado por algum tempo. Nariz e olhos vermelhos denunciarão que você anda consumindo algo extraordinário. Que seja este romance viciante.



Cotação: *****



sexta-feira, 21 de outubro de 2016

CONTOS APÓCRIFOS - O que a Bíblia não revelou, mas nossa imaginação, sim.


OS LIVROS APÓCRIFOS 
- Antologia de contos inspirados na Bíblia -



A palavra “apócrifo”, do grego apokrypha, significa: “oculto”, “escondido”. Termo empregado para designar livros, documentos não canônicos, textos que foram suprimidos, ao longo dos séculos, tanto no Antigo quanto no Novo Evangelho. 

Idealizada e organizada por Rubem Cabral, a antologia Os Livros Apócrifos (Caligo Editora Ltda, 2016, 186 páginas) reúne contos de nove autores diferentes. A edição, com a capa lindíssima assinada por Pedro Viana, apresenta a qualidade já esperada. O conteúdo não deixa nada a desejar, muito pelo contrário. 

Por ser um conjunto de textos de diferentes autores, a antologia não segue um estilo de escrita definido. Não há homogeneidade de contos, pois cada texto aborda um recorte bíblico, com uma visão particular de fatos não relatados nas escrituras.

A proposta de Os Livros Apócrifos consiste em criar narrativas baseadas nos muitos livros que não foram considerados como parte do cânone bíblico, como, por exemplo, o “Apocalipse de Moisés”, “O Evangelho Armênio da Infância de Jesus”. Para isso, os autores usufruíram de total liberdade ao retratar fatos com visões completamente diferentes dos textos que compõem a Bíblia “oficial”.

As inúmeras possibilidades de criação contribuíram para que os nove autores apresentassem contos surpreendentes. Cada conto apresenta uma versão alternativa, simbolizando um texto apócrifo singular, um pergaminho ainda perdido no tempo e no espaço. 

Relação de contos e autores:

Metamorfoses – Raione LP
O Irmão mais novo – Rubem Cabral
Os três dias – Fabio Baptista
A Torre de Nimrod – Valentina Silva Ferreira
Epístola de Pilatos – José Geraldo Gouvêa
Salomão e a Rainha das Luzes – Claudia Roberta Angst
O Evangelho Sangreal – Bia Machado
A Escada de Jafar – Gustavo Araújo
Vem – Diogo Bernadelli

De Jesus ao Rei Salomão, passando pelos mais variados e marcantes personagens bíblicos como Pilatos, Maria Madalena, Esaú e Jacó, os contos abordam temática inspirada na Bíblia, sendo que cada autor utilizou um tom próprio para criar o seu texto. Alguns escritores revelaram-se mais densos, enquanto outros foram mais irônicos.

Pode-se encontrar nas páginas desta antologia, tanto irreverência e ironia, quanto pinceladas filosóficas, romance e questionamentos. Há, também, relatos inspirados em uma realidade obscura, com a tentativa de humanização dos personagens. 

O leitor não encontrará uma tentativa de superação, nem mesmo comparação, do estilo bíblico. As vertentes de criação foram as mais variadas possíveis: história alternativa, ficção científica, romance, mitologia inventada, etc.

Nove autores e alguns segredos. O leitor é convidado a viajar nas possibilidades do “E se...”, sem se ater a preconceitos de crença, desvendando o mistério de cada personagem segundo sua própria percepção. Lembrando sempre que este é um livro de ficção.

Afinal, o que pode ser considerado real e o que foi inventado? Qual é a sua verdade?  E se...?

Cotação: *****

Livro disponível para venda em: 


quinta-feira, 20 de outubro de 2016

O ESCAFANDRO E A BORBOLETA







Direção: Julian Schnabel
Elenco: Mathieu Amalric, Emmanuelle Seigner, Marie-Josée Croze
Gêneros: Drama, Biografia
Nacionalidades: França, EUA

O filme conta a história de Jean-Dominic Bauby, editor da revista Elle francesa, que sofre um acidente vascular cerebral e perde sua mobilidade e comunicação. O protagonista choca-se com a reviravolta em sua vida: sustentado por um mundo das aparências, cheio de glamour e, de repente, preso em um corpo incapaz de se mover e de se comunicar efetivamente. 

A metáfora do "escafandro" sugere esse aprisionamento, uma angústia claustrofóbica, a clausura imposta pela condição física limitada. Por outro lado, o raciocínio de Bauby permanece intacto, o que lhe traz grande sofrimento por ser perfeitamente capaz de observar e avaliar a sua nova situação. Com a ajuda de terapeutas, o paciente aprende a se comunicar através do olho esquerdo, piscando para expressar um “sim” ou um “não”. 

A “borboleta” representa o que JeanDo, como era chamado por todos, possuía de mais livre e leve: a memória e a imaginação. Nesses momentos, em um monólogo imaginário, o protagonista/narrador assume a liberdade (com suas asas) que lhe falta no aspecto físico. 

O grande mérito da direção de O Escafandro e a Borboleta é posicionar o espectador no lugar do protagonista, experimentando a visão restrita de Bauby.  Talvez, este seja o aspecto mais genial e, ao mesmo tempo, mais insuportável do filme. 

Não é algo fácil de digerir, muito menos divertido, mas o filme vale como experiência que força a expulsão da zona de conforto. Não pretendo assistir novamente às cenas pesadas, mas reconheço que há muita poesia tanto no título quanto no desenvolvimento de toda a trama. 

O tom lírico prevalece criando um clima denso de total introspecção que incomoda bastante. Pelo menos, a mim incomodou. Isso é ruim? Não, necessariamente, pois o desconforto leva a pensar, a refletir sobre valores relegados a segundo plano em nosso cotidiano.

Não é uma obra cinematográfica que cause indiferença, longe disso. O mal-estar, instalado logo no início do filme, percorre todos os minutos seguintes. Admito que, apesar de me sentir muito incomodada com o ritmo moroso, que transforma as cenas em um corredor de cenas cada vez mais estreito, não há como negar a alta qualidade da produção. 

Tudo neste filme é inovador, com traços tão particulares que supera fácil outros trabalhos do mesmo nível. Por essa excelência, O Escafandro e a Borboleta recebeu críticas bastante positivas e levou o prêmio de melhor direção em Cannes, em 2007. 

Se você for claustrofóbico e não gosta de se sentir preso em outro corpo, desista de assistir a O Escafandro e a Borboleta. No entanto, se deseja experimentar novas sensações e aceita rever seus conceitos, mergulhe fundo com Jean-Dominic Bauby. Afinal, existem borboletas mesmo no claustro.

Cotação: ***

domingo, 25 de setembro de 2016

PRELÚDIO DO OCASO (Fabio Baptista)






O livro Prelúdio do Ocaso apresenta dez contos bem alinhados e mergulhados na fantasia. A linguagem esbanja clareza, humor e sensibilidade, aproximando o fantástico do verossímil. Missão fácil? Certamente não, mas o autor prova o seu talento a cada parágrafo. 

Uma espécie de mágica, obtida através das palavras muito bem manipuladas, transforma a leitura em uma viagem por um mundo encantado, onde se pode encontrar bardos, unicórnios, elfos, dragões, ninfas, goblins e orcs.  O leitor é convidado a conhecer um universo à parte, deixando-se conduzir por um caminho que julgava perdido em sua imaginação de criança. 

O livro começa com A Queda de Lenora Endriel, conto favorito do autor. Não é uma narrativa curta, mas depois de algumas poucas linhas, a trama revela-se uma ótima surpresa. Costumo resistir a contos longos que prometem muito e se arrastam em descrições e detalhes desnecessários. Não é o caso aqui, pois o texto ganha cores e ritmo mais contundentes à medida que a leitura avança. 

Embora o começo não seja tão interessante quanto o desenvolvimento, a trama prende a atenção e o final abre novas possibilidades que aguçam a curiosidade do leitor. O que acontecerá depois? A saga de Lenora continua? Espero que sim.


“Depois, todos seus sentidos renderam-se à escuridão.”

“É apenas um castigo. Dez anos passam rápido. Nesse tempo, espero que os livros coloquem em tua cabeça o juízo que minhas palavras não lograram êxito em colocar.”


Em Nome do Pai, o personagem Robert lida com as lembranças de infância e busca resgatar a memória e a honra de seu pai. Para isso, conta com a ajuda de um padre rabugento, sarcástico, responsável pelo toque de humor no conto.  Apesar da temática triste sobre a impossibilidade do relacionamento entre pai e filho, que mantêm um elo improvável, a leitura acaba provocando sorrisos. 

Pena de Fênix traz algumas considerações que servem tanto para humanos quanto para elfos, sempre com uma abordagem bem humorada da realidade/fantasia: 


Nosso coração também é de carne, e sangra todos os dias.

Melhor morrer sentindo-se vivo do que viver sentindo-se morto, não é?


Quando estiver tendo dificuldade em disfarçar uma lágrima no canto do olho, aconselho que leia A Princesa Dragão. Você vai chorar sim, mas agora de tanto rir. Pelo menos, foi o que aconteceu comigo quando li o conto pela primeira vez.

Há referências a contos de fadas, filmes, delírios transgênicos (opa, esse foi meu) que enriquecem o texto. Ficou claro que o autor não quis bancar o certinho coerente, obedecendo aos limites tempo/espaço. Dane-se a coerência! O tom de besteirol e as piadinhas despretensiosas aliviam qualquer fígado danificado pelo mau humor. O importante é se divertir, porque não está fácil pra ninguém, imagina para um elfo loirinho.

Mesmo que Custe sua Alma, conto que encerra a antologia, já empolga pelo título. Apesar do tema não me agradar, logo me interessei pelo enredo. Batalhas sangrentas, trolls fatiados, bruxa que já foi fada, muitos elementos para compor uma história de ação, tornando a epopeia de Alan Arunor  fascinante. Há, em todo a narrativa, uma aura cruel, condizente com a fama de escritor um tanto sádico de Fábio Baptista. 

Os demais contos são pequenas produções de um autor que prefere escrever usando elementos da fantasia e dos dramas cotidianos. Tenho lá minhas implicâncias com fantasia, mas desta vez, até me convenci a dar uma chance ao gênero. Graças ao seu estilo nada engessado, Fabio Baptista consegue apresentar ao leitor histórias que cativam e tiram o ar blasé de qualquer crítico mais exigente. 

Prelúdio do Ocaso promete (e cumpre) trazer novas experiências e sensações, ora emocionando, ora fazendo rir, e até mesmo despertando alguns instintos cruéis. Talvez, em algum momento, você também pense em esganar lentamente o autor. Mas quem poderá culpá-lo?  O que não vai acontecer é alguém permanecer indiferente à leitura. Ame ou odeie, mas, primeiro, leia o livro. Não vai se arrepender.  


Cotação: ****

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